domingo, maio 25, 2008

destruindo um universo

Há milhões de coisinhas para se falar de Shiva. Aconteceu-me uma coisinha para falar de Shiva: viajando para uma cidade do interior, a estrada é bloqueada porque um caminhão incendiou. Uma noite inteira vendo a fumaça se espalhar como um perfume que vai aderindo aos poros, um sentimento que vai se extinguindo, uma música que vai se compartimentando em algum lugar dentro de nós. A dança sagrada do fogo é sagrada, mesmo quando queima um automóvel.

terça-feira, maio 13, 2008

reparação


Concluo a leitura do romance Atonement(2002), de Ian McEwan, que, por aqui, recebeu o título Reparação e ele é demasiadamente superior à produção cinematográfica baseada nele, o Atonement(2007), traduzido Desejo e Reparação.

Emociono-me com as reflexões sobre literatura. São as reflexões de sempre, de muitos, mas arrumadas da forma que estão - comigo arrumada da forma que estou - me levaram para um local realmente pertubador: que preço teremos que pagar, nós, que lidamos com arte, para continuar seguindo este caminho?


"Então a dramaturgia transformou-se numa urtiga, aliás numa série delas; a superficialidade, o tempo desperdiçado, a desorganização das outras mentes, a inutilidade do faz-de-conta - no jardim das artes, era uma erva daninha que devia morrer" p. 94, Reparação. SP, 2002. Cia das Letras.

segunda-feira, maio 12, 2008

dimenti




Gosto desta liberdade do blog. De passar um mês longe dele e retornar como se nada tivesse acontecido. E nada acontece mesmo. Por causa da liberdade do blog. E como há liberdade, mudo as regras: publico aqui um textinho meu de ficção dramatúrgica. E outra regra também muda: é um texto grande para o tamanho que eu achava que devia ter um texto num blog. Mas o tamanho é o tamanho que queremos, não é mesmo? Lá vai: Maldita Infecção é o título. Mas também poderia ser Colosso, até mais rodrigueano. E foi um dos pequenos textos que o Dimenti montou nos seus 10 anos de grupo, em homenagem a Nelson Rodrigues. Eu, Cláudia Barral, Elísio Lopes Jr, Fábio Rios, Kátia Borges e Paula Lice fomos os responsáveis pelos monologuitos. Esta peça fará parte do repertório do Dimenti e por isso poderá voltar a cartaz em junho, dezembro ou abril do ano vindouro. Parabéns, Dimenti, por completar 10 anos nesta bela estrada de pedras.
Na foto, o ator Fábio Osório Monteiro.
MALDITA INFECÇÃO, de Adelice Souza

Arandir é todo dia. Ela sussurra esta frase no meu ouvido e vai enfiando a língua no meu corpo, em tudo o quanto é canto onde chega a língua, coisa sensacional. Eu também sou todo dia. E melhor que Arandir porque é todo dia e ainda sou gostoso, faço gostoso. Todo dia e gostoso. E ainda faço uma gemada para ela todo dia de manhã e levo na cama com um sorriso. Ato ritual. De pedra e cal. Batata que não minto. E não acho piegas. Ela é uma figurinha difícil da bala Ruth, tenho que agradar, tratar no ponto. Sou um homem de outro tempo, desses que já não se encontra hoje em dia. Solto beijo para ela no ar, com mão e tudo na boca, solto beijo pra ela a cada vez que saio de um cômodo a outro na casa. Quando estou no quarto e vou ao banheiro, de costas eu sei que ela está olhando pra mim, aí saio, viro de frente, feito passo de tango, solto beijo como se uma rosa estivesse cravada nos meus dentes, uma pétala roçando o lábio. Sou um amante latino, um diabo da Fonseca. Ela me adora, ela me venera. E eu a ela. Por isso é todo dia. E às vezes mais de uma vez ao dia, às vezes madrugada, manhã, almoço, ah!café da manhã e merenda. E de tarde, de noite até na hora da canja de galinha. Quando ela precisou fazer exame de laboratório porque estava com umas dores nos rins, ficou em jejum. Como não podia tomar gemada, aí eu levei água na cama. Faço as vontades. Água misturada. Do filtro e gelada. Água linda. Neste dia gritou em dobro, fez até poesia: disse que o meu pau tocava flauta, um pau romântico, um pau digno de Orfeu. E depois ainda cantou pra mim uma música do Roberto Carlos. A pequena tem cada palavrório de encher a boca. Mas tem uma coisa que eu acho estranho. É uma coisa bonita, honesta, honestíssima, eu compreendo, mas que é estranho é: ela só faz comigo no escuro. É cheia de pudores para se mostrar, mas grita gostoso feito o diabo. Grita de tudo. Um dia desses me chamou de Lafaiete. Disse que enlouquecia com este nome. Parei no ato, não consegui continuar, dei pra trás. Mas aí ela disse que Lafaiete é um nome de homem que ela nem conhece, nunca conheceu, entende? Disse que nunca conheceu um Lafaiete, mas achava Lafaiete um nome bonito de homem, ficava alucinada. E como ficou ainda mais gostosa, eu nem me incomodei dela gritando sem parar o nome de Lafaiete. Sou um homem ciumento, se eu soubesse, se intuísse que ela tivesse mentindo, eu mataria. Nunca imaginei que fosse matar alguém por amor, mas por essa mulher eu mataria. Eu mataria um, dois, cem mil. Minha mulher de costas é a mulher mais gostosa do mundo. Um traseiro que é um fenômeno. Um colosso! Um colosso de Rodes. Uma epopéia. Pelo traseiro da minha mulher, eu mataria até o presidente da república. O presidente. Coisa que eu gosto na cama é mulher que grita e a minha grita mais do que todas. Por isso eu nem me importo dela não deixar que eu a veja nua. Acho que até prefiro. Mulher séria mesmo não fica nua na frente de qualquer um. Tudo bem que eu sou o marido, mas sou homem. Essa semana me perguntou se eu queria ter filhos. Eu disse que não fazia questão. Ela disse que era melhor assim, não ia modificar o corpo. Eu juro que eu pensei no colosso. Aceitei no ato. Me confessou: não ia ter coragem de abrir as pernas pro médico. Achei isso lindo. Mulher séria mesmo não tem filho. Por isso que todo mundo é filho da puta. Mulher séria não abre perna pra médico. Mulher séria pra chuchu, a minha.
Ela é a mulher da minha vida, doutor. Por isso eu sou como Arandir: todo dia. Nem de dentista ela gosta. Diz que uma boca aberta é meio ginecológica. Passa bicarbonato nos dentes pra clarear e chá de anis pro hálito. E nunca teve nem cárie. Uma boca de fazer inveja a qualquer grã-fina de aparelho: 32 dentes. Quando era criança tomava bezetacil. Tinha amídalas inchadas. Tem até hoje um inchaço no pescoço. Eu gosto. Tem uma saúde de ferro, minha mulher. Batata que não minto.
Mas essa semana se deu um episódio, um fato tristíssimo: minha mulher começou a sentir umas dores fortes nos rins. Pensei: é fraqueza. Comprei um biotônico. Mas a dor foi aumentando. Fomos para o ambulatório. Receitaram uma injeção, ela tomou. No braço, evidente! Não passou. Crise fenomenal. Chegou o plantonista e disse:
- Infecção urinária. Cálculo renal. Se não expelir a pedra, bota o cateter e tira. Coisa simples, nem precisa internar. Entra hoje no hospital e sai antes das 24 horas.
Ela ficou em desespero. Gritava, chorava, esperneava, mugia. Nunca vi minha mulher assim. E a dor piorava. Quando não agüentou mais, desmaiou. Levaram para a enfermaria e horas depois, chega o plantonista com uma cara de quem viu viúva tomando chicabom. Eu perguntei:
- E aí? Cálculo?
- Cálculo.
E emudeceu, ficou num silêncio desgraçado. Depois disse:
- Olha, o cálculo saiu, mas tua mulher, tua mulher... Tu sabe, não sabe? Tua mulher é homem, rapaz. Tua mulher é homem.
Maldita infecção. Eu bem que um dia ou outro desconfiei, mas não se fala uma coisa dessas, assim, na bucha, para um marido. Plantonista! Só podia ser plantonista. Plantonista é pior que contínuo. Que raça! Quis partir a cara do sujeitinho. Uma audácia falar assim da minha mulher. Uma mulher honesta, doutor, honestíssima. Toma banho de combinação. Bem que ela estava certa em não querer abrir perna pra médico. Maldita infecção. Tá bom, é homem, uma tragédia, eu sei. Uma tragédia nacional! Mas não me importo, doutor. Ela grita gostoso feito o diabo. E uma coisa eu posso afirmar: não troco a minha mulher por nenhuma outra no mundo. Podem dizer o que quiserem, mas da Ribeira até Itapuã, ninguém grita como minha mulher.